Leitores

a canja não tarda

esvoaçam penas na cozinha tosca
onde fumega uma panela num chão de pedra
feito lareira
com paus de castanho e rama de oliveira
que enviam fumo perfumado
para presuntos e enchidos pendurados no telhado

cheira a domingo
a ama traja roupa limpa
e um chapéu de pano sobre o penteado

o pão chega da casa do forno
descansa ao lado da caneca de vinho

os sinos trinaram a missa do dia
e o galo já cessou o canto da viuvez

o varão sai apressado do palheiro

é tempo de matar o bicho

a goela reclama uma golada de bagaço
e um pedaço de bolo com chouriço
antes que desperte a canalhada
e a canja seja servida

é domingo numa casa plural
idos tempos...

ferool

A corrida das nuvens

Não sei que estação é!
Mas todas correm para o norte
suponho que venham do sul!...

São flocos de lã branca
num chato espaço que não sabe dizer o nome.
Um céu azul careca, sem lua.
Perdão! Com uma lua falsa, ou então a minha vista é que é falsa.

Vejo agora uma lua de meio dia. - Quero dizer de noite meia.
Não sei que lua é. Mas perguntando nos correios, disseram-me que era cheia...
Cheia de quê, de mim, ou dela?
Nunca tive confiança com ela.

Tinha visto às seis horas da tarde, na viagem que fazia para o norte – uma lua gorda, à esquerda, à direita, em todos os pontos, de tal maneira a via, que tive que parar para a observar e ver se realmente existia. - Só creio nas luas fixas! Não gosto de luas que mexem...

Correm, correm, sem mudar de direcção.
Vejo-as agora amontoadas no mais baixo horizonte norte.
Vieram do sul, já disse.
Porque não foram em todos o sentidos
pois não havia vento de lado algum.

Vi uma vestida de gato, só com patas dianteiras.
Uma outra figurava uma padeira com cesto de onde caiam pães.
Depois uma confusão de pequenas que mais pareciam formigas.
Mas que corriam como baratas.
E para findar uma nuvem morcego.

Apalpei com o dedo húmido, o vento. Era vento tradicional, daqueles que nem uma mosca matam.

Então, porque corriam as nuvens?

Soube depois, que iam todas para o norte, inscrever-se numa corrida para o sul, quando a lua fosse vazia.

Que chatice, ter que esperar a nova corrida.
Sem chuva, sem calor, sem frio, sem nada.
Espero...


Antanho Esteve Calado

instantes climáticos

vejo um escorpião no céu de março
tão branco que duvido
que seja da época
tão bem desenhado no azul chorão
duma noite sem confusão

agora já não é
transformou-se em cão
um cão de rabo ramalhudo
e de orelhas sem barbeiro

é verídico o que digo

um cão que valeria dinheiro
nas praças de Milão ou de Genebra
tão bela parece a sua catadura

vi isto agora
como na guerra
é em directo...

- uma esquisitice da natureza -

que mostrar mais neste céu calmo
para fazer esquecer o barulho da cidade distraída

fico de olhadura cravada na cúpula celeste

os bichos diluíram-se na estreia da cúpula nocturna
de repente
mais nada
apenas nuvens altas que nada informam

continuo na espreita para vos informar
mas creiam...

vi claramente a forma dum escorpião
que se transformou em cão
e depois em mais nada
num céu na altura do lusco-fusco
num dia-noite que não sei chamar

nada mais me mostra
ou nada mais sei ver.

ferool

Passarada

um dois três
quatro passos de pombo indiferente
na rama do pinho
a elegância do tamanco
bombeia o pescoço
virado ao poente
olha para trás
para ver se o seguem
e com o bico cinzento
arranha o peito branco
bica e repica
para ver se o percebem

até que um corvo
esvoaça a seu lado
olha para as pombas
com um mero piscar-de-olho
e levanta voo
sem pensar um bocado
volta para trás
quando sente o engano
pois era um zarolho
ou pombo abelheiro
recobrou o espirito
repousou no seu ramo

ferool

Instantes de novembro

O céu está baixo
as nuvens dançam um passo doble
o sol tenta abrir uma pálpebra preguiçosa
a língua morna não vence as cortinas de algodão cinzento
tanto aquele está barrento.

Cerro do norte com algum vento
Que bom tempo!... - o mar fala sozinho -
que arreda de mim os barcos cujos
que de marujos, apenas as cotovias
se queixam no fundo do vasilhame

Os meus peixes, que até agora estavam mudos
cantam a tese com as dúbias gaivotas
Não sentem saudades dos poliglotas

A cidade pariu o descanso
na calçada nenhum passo de salários
apenas o zombar dum velho manso

No meu prato, no Snack Mar Bravo
mesmo ao lado daquele. Que é o Golfinho
Sobram espinhas de sardinhas; de Espinho

Antanho Esteve Calado

Instantes dum inverno

Assembleia alada na floresta nevada

As aves reuniram-se no mais alto e frondoso castanheiro… A densidade era tal… Que a árvore destoava… Na floresta de cúpulas e.. ramarias nevadas… Um ponto escuro e rabugento.. na imensidão da brancura estática… Cada um gorjeava o seu dialecto.. na reunião sem protocolo

A pega com ar brejeiro.. abre a sessão
e o cuco ainda de casaca.. faz de escrivão
a pomba prepara os aparatos para a transmissão
e a rola chama os atrasados para a reunião

No inicio a papaguearia.. mais parecia uma assembleia humana… As aves com assento acomodavam-se naquele dos outros… Que por sua vez se acomodavam nos dos outros.. vagos… Assentos vazios.. talvez os da oposição.. se oposição havia… Até que chegou o falcão e.. como quem não quer a coisa

No galho mais alto pousou
estranhamento o barulho cessou
e a pega pode expor a ordem do dia
“porque é que tanta neve caía”

As opiniões divergiam… Era tudo burburinho.. tudo caramunhas… Os que moravam em ninhos altamente hospedados.. Queixavam-se que as moradias se tinham derrocado.. com o peso da neve… Outros que aninhavam nos baixios.. não mais encontravam a pista para a moradia… Pois a paisagem era invariável planície esbranquiçada.. sem motivo de guia… Tudo isto era uma sinecura… Dizia o chasco.. em aparte com o pintassilgo… Um olhar agudo do falcão... e o burburinho estancou

A andorinha traçava círculos no céu
tentado desvendar o espesso véu
de nuvens carrancudas
bárbaras e abelhudas

A águia voava mais alto do que os seus corredores aéreos tradicionais… Violando assim o espaço que lhe tinham atribuído… Em tempo de crise.. pensou… O contraveio é juízo

Tentando furar um buraco para o sol passar
nem tempo teria para almoçar
também não via mesa posta.. pensou
no chão branco.. a pitança ainda não acordou

De repente.. um pipitar estridente… Fulminou os ares… Captado pelo papagaio.. que o transmitiu ao gaio.. que o levou à pega

O sol no alto rompeu - recebemos mensagem da águia real
o cuco escreve na acta - jornal
assinemos a assembleia o sol reveio
deixemos os trabalhos a meio

Tiras de luz de oiro.. residiam agora nas ramas… E a neve aluía.. o piar era intenso… Mas ninguém mexia… Os olhos postos no cume.. medo do falcão vigilante... Que sentindo o mal estar.. levantou voo no instante… E então.. foi um debandar.. da passarada a cantar... O milagre da floresta… De branca hibernal.. virou loira primavera.

“poéfilo”

Montefrio (Fernando Oliveira)

instantâneos de julho

apagaram o sol...
agora acendam as estrelas

apagaram o sol
mas não acenderam as estrelas...

há um fumo em forma de caracol
que não me permite vê-las

pororoca de confusão sem bemol

como o ordenar das caravelas
dum tonto capitão sem rol

que deixou o mapa nas capelas

apagaram o sol
e não acenderam as estrelas

ferool

É natal...

Fechado num quarto dum albergue
fiz as pazes comigo

A cidade morreu

Mas a música natalícia
ainda ecoa no meu cérebro

Tenho que me lavar...

Enfim o silêncio

Estou esplendidamente só
mas lavado

Por um dia
evacuei a sociedade
e nada dei

Não tenho folhas de azevinho
verdes como a filantropia

Apenas cascas de carvalho
que Júpiter me ofereceu

Não posso dar o que recebi
falta-me catolicidade

Nem tenho frutos vermelhos
para oferecer ao menino

Mas tenho vinho...

Da última parreira que encontrei aberta
este jorrará no meu copo
até que a sede - me apeteça

São malhas que o império cristão teceu
não sou eu

É a cidade que está indefesa

Até o alumiar desertou o campo da generosidade

Estou esplendidamente às escuras
e o copo partiu...

ferool

os cabos do tempo

alguns dobram o cabo do tempo
com golpes de mímica secular
colhidos na clareira do lapso

são entidades enciclopédicas
que engelham e afluem
na nesga onde flui o feto do ovo

outros mergulham no olho da tormenta
como a flor do desgosto
morrem na culpa da estação

são sombras anémicas
que golpeiam as veias do ciclo
esgotando o esboço do facto

ferool

instantes de setembro

durmo nas fraldas do equívoco
com os pés vivos e a cabeça morta

no chão
ao lado dos chinelos

epístolas descansam
abraçadas ao tapete

bebendo a dor dos passos vencidos

rebentam trovões no quarto vil

são sinos que ladram e cães que tocam
a sinfonia duma manhã que não quero

ainda não adormeci
e já me acordam

onde está a leiteira

que pão cozeu o padeiro

que horas são

que dia é

que missa me serviram na véspera

que papa-hóstias me amaldiçoou

porque não posso dormir em lençóis de linho
frente à janela que me dê meia-lua
aberta ao som duma harpa de sonho

que me acalme os pés
e desperte a cabeça para o sossego

que trapos me vestem

então que desperto

deitei-me com vinho e sem sono

durmo nos vapores do mal-entendido
porque dormir
é arte
que perdi

ao te deixar acordar sem mim

ferool

o amálgama do sol

I

apaguem-me este sol impiedoso
ou activem um vento
fausto
forte e frio

desamparadas da graça da natureza

as castanhas assam no castanheiro
com os arroubos do fogaréu

a cigarra há muito desmaiou
é a formiga que canta
no subterrâneo racional

o oceano dorme preguiçosamente

sem a fragrância da ira
é mais manso que um regato

as víboras rendilham nuvens
e os macacos suicidam-se na cachoeira
de encontro ao chão miragem

II

ponham as montanhas no mar
ligadas por istmos
que me levem a viajar
por onde quero

pois não sei nadar

não ouço os sons da sineira
deste lado do mar
apenas ossos que chocalham
e dores dum acordeão

bátegas bondosas festejam de encontro à eira
donzelas de peitos folhosos
que espetam os olhos piedosos no céu

e desprezam o astro de fogo


rei
é o singelo vestido de lousa
que domestica o grilo
no embaraço de cânticos antigos

como as giestas que encantam o burro
nas lendas do sacrifício

III

enviem-me sóis verdes e luas brancas
a noite é tão confusa
quanto a escuridão é reconforto

os lençóis transudam saliva adocicada
de distâncias anais
adormecidas no caruncho do leito

é julho ainda
mas já escuto vestígios de agosto
na roupa do vesgo
e na desenvoltura da sacristia

IV

juninas são as minhas ideias
que apodrecem no mio embriagado
de fogo

peço a Júpiter chuva e pão
marés de peixes voadores
que apetitem a minha escudela

e uma farta courama
que me albergue
até que anunciem

um sol
fresco e carinhoso

sanguíneo ou setentrional

ferool

instantes de outubro

a temperatura caiu tão de repente
o vento exibiu todos os seus recortes
que o regresso ao lar era muito urgente
fugir do frio é cobardia dos fortes

aqueles que não aceitam o desafio
do parir gelado como fio de navalha
no dia de outubro que até então era estio
e de repente volveu reverso de fornalha

bem dizia a imagem do meu velho sobretudo
que homem avisado é aquele que desconfia
da cara do dia que parece calmo e mudo
que de soslaio abre as goelas da agonia

minha mãe possui a ciência da previsão
minha pretendida sabe de meteorologia
disseram-me ambas com demais razão
que se saísse desconfiasse deste dia

mas como gosto de andar em contra mão
e desafiar o caminho bem traçado
sai vestido como um veraneante folião
e agora possuo um memorável resfriado

ferool

há dias assim - que não assam nada -

era um dia chato no calendário ocidental
uma pedra na canícula

o erro do sol

aquele ponto sem leitura que simboliza a beleza duma estação esquisita

errou

no lugar de esquentar os peitos já crestados por beijos indecentes
que mirravam na procura do olhar infernal

cessou de emitir as mensagens de vaidade

ficaram na areia algumas nonas expulsas do livro sagrado
viradas do avesso rezando um verso particular
pedindo ao pai do azul
um sol ameno
que lhes permitisse sonhar

já não satisfaz
cascatear
o corpo enrodilhado em fitas improváveis e óculos de rã

havia um hiato no grito da criança traquina
que esbagoava nas costas da bendita
um arrazoo indelicado

uma afronta

a acareação entre a galinha e o ovo
depois da aliança parida

havia na mãe de penas
um arruar ímpio
uma chispa
tal bandarilha de ferro velho que trespassava o anjo inconveniente

mas o dia era chato demais
a criança mais bela que o sol

a fêmea ensanduichou o desacordo do dia chato
numa toalha convencional

olhou o sol que não era chato
foram para casa de mãos dadas
chupando o mesmo sorvete

ferool

o erro da chuva

o céu espreme as nuvens
sem piedade

é indecoroso chover na terra encharcada
quando a angústia suspira no tédio do deserto

que espera o animar arenoso
na orla dum culto polido

onde o céu ri a meias com o sol

se aquém do horizonte
as palavras se escrevem com humidade

além no espaço nutrido de agonias
as letras esturram na fralda seca

ferool

a fervura da terra

com um sorriso de impetuosidade
- no vértice do seu poiso -
o astro rei pinta o céu de fungo vermelhão

as ervas fervem e as formigas revoltam-se

acoimadas pela natureza
rosnam pelo chã vertido
no ingénuo tapete que o sol metamorfoseou
em levedura de lodo ardente

com as antenas em efervescência
penetram no subterrâneo
dum ervário mais clemente

esperando a morte do sol

ferool

temporadas e o mito do ninho

aquém do ovo
os prefácios da invernia
são colunas de primavera

garbos de pasmo
brotados de mina estóica

indagos de legitimidade
que vestem a albumina de branco
e a gema de rosa raiz

durante o ovo
a leitura do talento límpido
é auspicio de prolixo estio

rasgos de autenticidade
estendidos no feixe de capim

aquecem os bicos
com gírias de cabalas quentes
e archotes de caldo intenso

além do ovo
ventos de ousadia outonal
mancham as asas de neve

o voo austero é agora
síntese das estações

sopram sons panegíricos
bicos mesclados na saudade
do mito do ninho

ferool

a moça e os cães

a moça é magricela
de negro sujo vestida
de sujo negro
lavada
cravada de ferros em todo o seu fado
na pele como na roupagem
na alma como no passaporte

infanta de si
peregrina
filha de algum amor
que volveu loucura
agora sem baptismo
não sabe dizer pai nem mãe

a miséria é a arte da vida
na urbe estrangeirada

com ela
sete cães a olham
com fome de lenhadores

ela não vê nem olha
eles não a vêem olhando

desejos de jantar nas oito bocas

a moça descansa cercada pela muralha de cães
não fala
eles não latem

Lisboa à tarde
nas portas de Santo Antão
barriguda de miséria
à hora da refeição

ferool

rostos de maio I

em maio faz frio e calor
venta e emudece
chove grosso ou miudinho

tudo se manifesta
na superabundância sensual
tudo é farol em andamento

até granizo cai no arvoredo
que desfaz o ninho
e a atmosfera se revela
em quantos minutos tem o dia

uma pega chinfrineira
vigariza o silêncio

em maio só existe o dia
a noite é baunilha-dos-jardins
de cheiro e calma
e a lua foice
que predispõe à colheita
da eucaristia

- o céu é um conjunto de telas
um mundo pleno de ousadias
com cores falsas e verdadeiras velas
que adormecem nas noites frias -


- até um morcego
mostra a perícia do seu voar
no limiar da noite o investigar
dum anfíbio que não é cego -

ferool

rostos de maio “parece vida”

o amarelo risca o verde
que risca o amarelo
sob a cúpula azul
que hoje não chora

o patriarca vende pão
para pão comprar

cacos velhos expostos à vivissecção da consciência mercantil
exalam as últimas gotas de memória
a miséria sobrepujasse à soberba
na calçada indefinida

a desobediência do cão
altera o ritmo da natureza

é maio
parece vida
a camada de terra arável
transuda mensagens do subsolo

gritos cabralinos mesclados de dor tropical
inserem-se entre o perfume e a carne do fruto
o velho gaveano expõe a pança ao sol
enquanto improváveis barbeiros lhe tonsuram a trunfa

é maio
parece vida
a digestão metaforizada entre o tempo e o espaço da refeição
a erva é doce e verde e o sol é mel sem pão

ferool

luarages

“verde.. azul e cera
a contagem.. é complexa tacha.. de primavera
nada rima
apenas o instantâneo prima”

a visão é fidedigna
e o quadro é natural

a lua é estúpida.. ou curandeira...
olha-me.. como uma careta
a sobrancelha esquerda carregada
e a face direita desbotada
a boca é imensa.. mas fechada
no céu uniforme.. assusta as andorinhas
que pipilam em voos rápidos e imprevistos
até à colisão.. qual é a maluquice...

agora parece rir.. um riso de palhaço
o nariz da cor do seu espaço
mas os olhos parecem encovados
do olho esquerdo.. figura escorrer uma lâmina de enxurro
distorce-se.. agora é feia
e tem a boca cheia
desbota-se agora
não demora
que se afaste com vergonha

ainda ri.. mas o riso é mais poente
tem agora o feitio duma melancia
nenhuma estrela a avizinha
só um azul tríplice
terço de fogo.. água.. marinho aéreo
perdeu a boca
já não é mais.. que uma bola louca
mostra uma língua de fogo.. em jeito de cabelo

agora na cumeeira
uma minúscula estrela.. espia-lhe a noitada
não há mais nada
já não me olha.. apenas está

as andorinhas recolheram para o leito verde
o silêncio acentua o muar
daquela que não é.. nem nova. nem cheia

o céu já é uniforme
azul de fonte
e o astro é quase sol

aperta-se o verde do horizonte terrenho

vou dormir
a lua cansa-me.. de tanto brilhar

só mais uma coisa...

a estrela que lhe é perpendicular
é mãe ou filha...
e para onde foram as outras estrelas morar...

ferool (Fernando Oliveira)